terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O bakuninismo: ideologia, teoria, estratégia e programa revolucionário anarquista

O bakuninismo: ideologia, teoria, estratégia e programa revolucionário anarquista
Selmo Nascimento da Silva*


 1. INTRODUÇÃO1

Neste ano de 2014 comemoramos o bicentenário do revolucionário anarquista Mikhail Alexandrovitsch Bakunin. Nascido no Rússia imperialista e czarista do século XIX, na província de Twer, em 1814, numa família de origem aristocrática de tradição militar, Bakunin se tornaria um dos pensadores revolucionários mais influentes da sua época, estendendo sua influência pelo século XX e chegando às primeiras décadas do século XXI com muita vitalidade.

Apesar de toda a importância de seu pensamento político, de sua ideologia, teoria, estratégia e programa revolucionários, sua obra é pouco conhecida e difundida no Brasil. O acesso ao seu pensamento político ocorre, normalmente, por fontes secundárias, sejam de origem liberal, marxista ou libertária, ou por contato com textos fragmentados. Via de regra, historiadores e cientistas sociais passam por toda a sua formação na graduação e na pósgraduação das principais faculdades do Brasil sem discutir um texto sequer de sua autoria.

De fato a divulgação da obra de Bakunin fica sob a responsabilidade de militantes e organizações políticas anarquistas e libertárias. A tradução e publicação de seus livros têm sido o resultado do esforço de militante que organizam selos editoriais e editoras alternativas e publicações virtuais2 . Não por acaso predomina no meio acadêmico e de militância política a reprodução de interpretações preconceituosas e dogmáticas, resultantes principalmente de críticas marxistas e interpretações liberais3 .

É perfeitamente possível afirmar que o pensamento de Bakunin, e, consequentemente, a ideologia e a teoria anarquistas, se enquadra naquilo que Micahel Foucault denominou de “saberes sujeitados”, ou seja, trata-se de “uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes ingenuamente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento” (Foucault: 2002: 12). O que se observa é uma tentativa de “silenciar” o anarquismo, tratando as obras dos teóricos anarquistas como se elas não existissem, reproduzindo apenas os seus críticos e seus comentadores, alimentando o preconceito e o dogmatismo.
As principais críticas oriundas do preconceito e do dogmatismo são, primeiro, de que o pensamento de Bakunin seria uma ideologia pré-moderna, ou seja, desenvolvida num contexto do capitalismo insipiente, da “infância” do movimento da classe trabalhadora e da condição pré-científica do socialismo. Em segundo lugar, é comum a crítica de que suas concepções teriam uma origem liberal ou pequeno-burguesa. Um trecho do verbete “anarquismo” do Dicionário do Pensamento Marxista sintetiza bem essas duas críticas:

Proudhon e Bakunin, foram considerados suficientemente importantes para merecer críticas detalhadas de Marx e Engels, que, de um modo geral, concebiam o anarquismo como um fenômeno pequeno-burguês, ao qual aliava-se, no caso de Bakunin, o aventureirismo demagógico característico dos intelectuais déclassé e do lumpemproletariado. (Bottomore, 2001: 12)

.Apesar dessas críticas não resistirem a uma simples leitura de uma das obras ou a uma reflexão sobre a biografia militante de Bakunin, elas são exaustivamente repetidas, principalmente pelos críticos marxistas
Bakunin foi um revolucionário do seu tempo. Após abandonar o serviço militar, iniciou seus estudos filosóficos e o debate com teorias contestatórias por volta de 18364 , participando de círculos de discussões filosóficas em Moscou, onde debatia autores como Kant, Fichte, Feuerbach e Hegel. Se aprofundou na filosofia hegeliana, evolvido nos debates dos hegelianos de esquerda, ao se transferir para a Alemanha na década de 1840, ao mesmo tempo em que aprofundou as discussões sobre o socialismo francês, desenvolvendo críticas a Saint-Simon e Fourier, que considerava autoritários, e estreitou suas relações com Proudhon. (Carr, 1972: 124; 144-145)

Em 1848, durante o levante proletário conhecido como a Primavera dos Povos, Bakunin participou da rebelião popular em Praga. No ano seguinte, participou de outra insurreição popular, desta vez em Dresden (Alemanha). Perseguido pelas forças repressivas, foi acusado de terrorismo, preso e condenado à morte. Entretanto, a penal capital foi convertida em prisão perpétua e ele foi extraditado para a Rússia, onde ficou preso na Fortaleza de Pedro e Paulo. Em 1857, foi exilado na Sibéria, de onde fugiu em 1861, passando pelo Japão, pelos Estados Unidos e retornando à Europa. 

De volta à Europa, Bakunin reiniciou sua militância política, reencontrou Proudhon em 1864, que veio a falecer no ano seguinte. Fundou a Fraternidade Internacional, organização secreta anarquista. Nesse processo escreveu os “documentos secretos”5 , isto, cartas enviadas para companheiros revolucionários convocados para adesão à organização revolucionária, onde Bakunin define a ideologia, a teoria, a estratégia e o programa anarquistas

Se inseriu na Liga da Paz e da Liberdade com o objetivo de recrutar novos militantes para a causa revolucionária. Para o congresso da Liga da Paz e da Liberdade escreveu sua obra Federalismo, Socialismo e Antiteologismo: Proposição apresentada ao Comitê Central da Liga da Paz e da Liberdade, em 1867. Rompeu com a Liga e fundou a Aliança Internacional da Democracia Socialista, organização revolucionária coletivista, e aderiu à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) no ano de 1868.

Bakunin e os aliancistas tiveram uma atuação fundamental no interior da AIT6 , especialmente a partir do seu terceiro congresso, realizado em 1868 em Bruxelas, contribuindo com teses em defesa da abolição da propriedade privada, em defesa do coletivização dos meios de produção e do delineamento da estratégia da greve geral insurrecional. Publicou diversos artigos no jornal L'Egalité, incluindo o texto Dupla greve de Genéve, de 1869, onde analisa as greves organizadas pela Primeira Internacional e traça a estratégia da greve geral. Durante sua atuação no interior da AIT aprofundou suas divergências com a ideologia e a teoria marxistas.

Escreveu em 1869 o livro O Urso de Berna e o Urso de São Petersburgo e em 1870 o livro O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social. Esse último, escrito durante a Guerra Franco-Prussiana, faz uma análise de questões como a paz, a guerra e a revolução. No ano de 1871, Bakunin e seus companheiros atuaram na insurreição proletária da Comuna de Paris. O encadernador e representante da Seção Parisiense da AIT, Eugéne Varlin, militante da Aliança, foi uma das principais lideranças no movimento insurrecional. Bakunin atuou diretamente na Comuna de Lyon. O massacre dos communards, promovido pelas forças da reação, impactou significativamente o movimento internacional dos trabalhadores. Sobre a Comuna o anarquista russo publicou duas obras em 1871: Cartas a um Francês sobre a crise atual e A Situação Política da França. No ano de 1871 não foi realizado o congresso da AIT, em decorrência da Comuna de Paris. No lugar do congresso ocorreu uma conferência convocada pelo Conselho de Geral da AIT, sob hegemonia de marxistas e blanquistas. A conferência aprovou a política de fundação de partidos operários para disputar as eleições burguesas e aumentou os poderes do Conselho Geral, tais decisões acirraram os conflitos entre anarquistas e marxistas na Primeira Internacional.

No ano seguinte, em 1872, no congresso de Haia da AIT, as tensões entre os marxistas e seus partidários e entre os aliancistas e seus aliados atingiram seu pondo inflexão, cujo resultado foi a cisão da Primeira Internacional. Por causa das dificuldades provocadas pelos desdobramentos da derrota da Comuna de Paris, o quinto congresso da AIT contou com baixa participação dos aliancistas, destacando a ausência das delegações da Itália e da França e do próprio Bakunin, assim os marxistas construíram uma maioria fictícia (Cole, 1974: 190). Os marxistas aprovaram a expulsão de Bakunin e James Guillaume e a transferência do Conselho Geral para os Estados Unidos. Entretanto, a maioria das seções não aceitaram a decisão, e atendendo a convocação feita pelos anarquistas, realizaram um novo congresso ainda em 1872, em Saint Imier, que contou com a participação das seções italiana, espanhola, americana e francesa e a jurassianana (suíça). Posteriormente recebeu a adesão da seção belga. O congresso de Saint Imier não reconheceu as decisões de Haia, e decidiu manter a organização da Primeira Internacional, com sede em Londres. Mais tarde essa organização ficou conhecida com a “ATI-Antiautoritária”

Sobre as divergências e os conflitos com os marxistas na Primeira Internacional, Bakunin escreveu Estatimo e Anarquia: a luta entre duas tendências na Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1873. Bakunin permaneceu militando até 1874, quando a deixou a vida pública em razão de sua saúde estar debilitada. O anarquista russo faleceu em Berna no ano de 1876, mesmo ano da autodissolução da AIT com sede em Nova Iorque.

Esse pequeno resumo da biografia militante de Bakunin nos ajuda a entender o anarquismo como um fenômeno histórico concreto, uma ideologia, uma teoria, um programa e uma estratégia revolucionária desenvolvida por atores sociais concretos, inseridos na luta de classes da Europa do século XIX, refletindo sobre suas práticas militantes e sobre as experiências de luta dos trabalhadores contra a burguesia. Considerar o ano de 1848 como o início da militância revolucionária de Bakunin, significa considerar o ano que marcou a ação política da classe trabalhadora assumindo o formato da ação de uma classe revolucionária (Reis Filho, 1998). Considerar o ano de 1864 como o marco da definição da teoria e do programa anarquista, significa considerar o ano de fundação da AIT. Considerar a atuação da AIT e dos aliancistas na Comuna de Paris e a atuação de Bakunin na Comuna de Lyon, significa considerar a primeira experiência do autogoverno dos trabalhadores. Ou seja, o anarquista russo militou e teorizou num contexto revolucionário que nada tinha de pré-moderno ou pré-capitalista, muito pelo contrário, era um contexto de pleno desenvolvimento capitalista e de amadurecimento político da classe trabalhadora

Além disso, Bakunin teorizou sobre o monopólio capitalista, dando continuidade aos estudos aprofundados de Proudhon. Entre 1850 e 1870 um processo se consolidou: a tendência de desaparecimento das pequenas empresas e a concentração de capital nas grandes empresas. Esse foi o processo de concentração e de expansão em escala internacional do capitalismo monopilista, garantido pela “brutalidade organizada dos Estados”, que viabilizaram, como afirmou Bakunin:
a grande exploração financeira, comercial e industrial, 

a grande espoliação internacional; alguns milhares de homens internacionalmente solidários entre si e dominando, através do poder dos seus capitais, o mundo inteiro. Em plano inferior, a média e a pequena-burguesia, classe outrora inteligente e desembaraçada, mas hoje sufocada, aniquilada e lançada no proletariado pelas progressivas conquistas dos barões das finanças (Bakunin, 1979, p. 12). 

Em termos de periodização do sistema capitalista, normalmente se identifica a fase de acumulação monopolista de capitais a partir de 1871, portanto, para Bakunin está explícita essa tendência da economia capitalista. Mais do isso, o anarquista russo apontava para o predomínio crescente do capital financeiro, que ele denominou de bancocracia, isto é, o poder do capital bancário na coordenação da divisão do trabalho, como uma das características desse período (Bakunin, 2003: 35).

Uma terceira crítica é direcionada a pretensa fragmentação da obra teórica de Bakunin, uma vez que ele seria um militante de ação, pouco preocupado com a formulação teórica, por isso praticamente não tem um livro completo, sendo o conjunto da sua obra um conjunto de textos fragmentados e inconclusos. 

Foi Thomas Masaryk, que  apontou toda a sua volatilidade indubitável, se “os anarquistas estimam Bakunin como um homem de ação, eles estão enganados, ele era um diletante de ação”. Sua prática e sua teoria eram como uma colcha de retalhos, de tantos fragmentos. Bakunin vivia para o momento. Embarcava em aventuras revolucionárias e tratados teóricos com fervor, mas raramente eram concluídos. (Thomas: 1980: 283-284).

Essa crítica é mais uma tentativa de desqualificar a obra de Bakunin, procurando negar o desenvolvimento de uma teoria. De fato, sua obra sofre pela edição e publicação de fragmentos. Trechos de livros são retirados, descontextualizados, por vezes editados, e publicados com títulos imputados pelos editores. O caso paradigmático é a publicação de Deus e o Estado em 1882 por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, pois os editores retiraram um fragmento de um dos apêndices do livro Império Knuto-Germânico e a Revolução Social, atribuíram um novo título e editaram modificando a ordem de alguns parágrafos. O resultado foi que uma das “obras” mais conhecidas de Bakunin é na verdade um fragmento editado de uma obra muito maior.

 Entretanto, o entendimento da produção teórica de Bakunin tem assumido uma nova fase desde a organização e a publicação em CD-ROM das suas Obras Completas pelo International Institute of Social History de Amsterdã, em 2000. Pesquisadores como Paul McLaughlin (2002), por exemplo, passaram a defender a tese de que Bakunin desenvolveu uma teoria filosófica.

Uma das críticas mais pueris é a pretensa origem liberal do pensamento de Bakunin e do anarquismo. Os críticos marxistas e interpretes liberais insistem na filiação do anarquismo ao liberalismo. Porém, encontramos no socialismo francês, ou melhor, na crítica revolucionária à propriedade capitalista feita por Proudhon, na obra O que é a propriedade?, publicada em 1840, as origens do anarquismo. Bakunin é um proudhoniano e desenvolveu duras críticas aos postulados do liberalismo e os bakuninistas eram conhecidos como uma corrente coletivista no interior da AIT, porque defendiam o fim da propriedade privada e a coletivização das terras e dos meios de produção.

A noção de liberdade em Bakunin é radicalmente oposta aquela elaborada pelo liberalismo, pois para ele a liberdade é o resultado do trabalho coletivo. “A liberdade dos indivíduos não é absolutamente um fato individual, é um fato, um produto coletivo” (Bakunin, 2008: 74).

A quinta crítica que destacamos vem do campo do anarco-comunismo que, a partir de uma determinada interpretação de sua obra, considera a teoria de Bakunin limitada pelo economicismo, típico do marxismo:

Hoje, penso que Bakunin foi muito marxista na economia política e na interpretação histórica. Creio que a sua filosofia se debatia, sem conseguir sair, numa contradição entre a concepção mecanicista do universo e a fé na eficácia da vontade sobre os destinos do homem e da humanidade. (Malatesta, 2010: 92).

Considerando os fragmentos descontextualizados publicados sob o título de Deus e o Estado é possível interpretar a teoria bakuninista como propensa ao economicismo, entretanto, com a leitura da obra completa de onde esses fragmentos foram retirados e editados, nossa interpretação é completamente diferente: Bakunin combateu o determinismo econômico e desenvolveu sua teoria a partir da dialética serial proudhoniana

A reflexão mais aprofundada da obra de Mikhail Bakunin permitirá uma compreensão global de sua teoria revolucionária, dos seus principais conceitos e, fundamentalmente, da atualidade do seu pensamento.

2. IDEOLOGIA E TEORIA: MATERIALISMO SOCIOLÓGICO E DIALÉTICA SERIAL

 O projeto teórico de Bakunin encontra-se embricado com sua ideologia revolucionária, portanto, sua teoria não é neutra, mas faz parte da sua perspectiva revolucionária, está a serviço da revolução social que, por sua vez, é o único caminho para a emancipação da classe trabalhadora. Assim, o pesamento bakuninista estabelece duas tarefas fundamentais para alcançar a emancipação: “a ciência racional e a propaganda do socialismo” (Bakunin, 1988: 43).

 A ciência social bakuninista é definida em oposição à metafísica, porque é fundada na experiência concreta e na crítica radical.

 A filosofia racional ou ciência universal não procede aristocraticamente, nem autoritariamente como a falecida metafísica. Esta se organiza sempre de cima para baixo, por via de dedução e de síntese, pretendendo também reconhecer a autonomia e a liberdade das ciências particulares, mas na realidade incomodava-as horrivelmente, até o ponto de lhes impor leis e até mesmo fatos que, frequentemente, era impossível de encontrar na natureza, e de impedi-las de se entregar a experiência cujos resultados teriam podido reduzir todas as suas especulações ao nada. A metafísica, como se vê, opera segundo o método dos Estados centralizados. A filosofia racional, ao contrário, é uma ciência democrática. Organiza-se de baixo para cima livremente, e tem por fundamento único a experiência. Nada do que não foi realmente analisado e confirmado pela experiência ou pela mais severa crítica pode ser por ela aceito. (Bakunin, 1988: 44-45).

Bakunin reconheceu a importância de Auguste Comte ao propôr uma ciência da sociedade, a sociologia, entretanto, condenou o cientificismo positivista, pois este transforma a ciência num instrumento autoritário. O bakuninismo não considera a ciência como portadora de “dogmas absolutos” e elabora uma crítica não só epistemológica ao positivismo, mas também uma crítica política do positivismo que transforma a ciência em teologia, ou seja, os positivistas entendem que a ciência tem um fim em si mesmo como se fosse uma divindade.

Nós, revolucionários-anarquistas, defensores da instrução geral do povo, de sua emancipação e do mais amplo desenvolvimento da vida social e, por isso mesmo, inimigos do Estado e de toda gestão estatista, afirmamos, ao contrário dos metafísicos, positivistas, eruditos ou não, prostrados aos pés da deusa ciência, que a vida natural e social sempre precede o pensamento, que é apenas uma função, mas nunca o resultado. (Bakunin, 2003: 167).

 O bakuninismo se filia teórica e ideologicamente à perspectiva proudhoniana:

 Cabet, Louis Blanc, fourieristas, saint-simonianos, todos tinham a paixão de doutrinar e organizar o futuro, todos foram mais ou menos autoritários. Mas eis que Proudhon apareceu: filho de um camponês, de fato e de instinto cem vezes mais revolucionário de que todos estes socialistas doutrinários e burgueses, ele se armou com uma crítica tão profunda e penetrante quanto impiedosa, para destruir todos estes sistemas. Opondo a liberdade à autoridade contra estes socialistas de Estado, proclamou-se ousadamente anarquista. (Bakunin, 1988: 25-26).

Bakunin, como defende o pesquisador Andrey Cordeiro Ferreira (2013), é um continuador da obra de Proudhon. Podemos destacar que ideologicamente dois fundamentos proudhonianos são centrais para o bakuninismo: o socialismo e o federalismo. O socialismo proudhoniano estabelece a propriedade privada capitalista como a origem das desigualdades econômicas, como a origem da exploração do trabalho, uma vez que a propriedade é um roubo, e, portanto, a revolução social deve abolir a propriedade privada. O federalismo se opõe à centralização estatal, que é mantenedora da propriedade privada. O federalismo é considerado como base da igualdade política, pois se opõe à centralização do poder e garante a efetiva participação política das massas organizadas nos organismos de gestão da sociedade de baixo para cima. Assim sendo, o programa anarquista é socialista e federalista: a liberdade sem o socialismo é o privilégio e o socialismo sem liberdade é a escravidão (Bakunin, 1988: 38).

 Teoricamente, Bakunin aplicou o método da dialética serial antinômica de Proudhou, como veremos mais adiante.

A teoria bakuninista é uma teoria materialista, isto é, recusa os postulados do idealismo que pressupõem a existência de uma consciência exterior às sociedades humanas, tal com Deus, o mundo das ideias, o espírito humano, a razão de Estado, etc. As perspectivas idealistas, religião, metafísica, liberalismo, positivismo, são perspectivas teológicas, por isso, Bakunin caracterizou a sua perspectiva materialista de antiteologismo, quer dizer, pela negação de todas as formas de teologismo: o idealismo, a religião, a metafísica, o liberalismo o socialismo autoritário.

Para desconstruir as bases do teologismo, Bakunin recorreu a teoria naturalista de Charles Darwin para negar a teoria criacionista e, consequentemente, a tese da existência de uma consciência extramundana, que seria a causa primeira de tudo que existe. Assim, o materialismo bakuninista parte de dois pressupostos: o naturalismo e a totalidade, ou seja, a realidade material é constituída pelo conjunto indefinido dos fenômenos naturais, físicos, químicos e biológicos, sendo o resultado de múltiplas determinações da dialética da ação reação.

Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob o aspecto da qualidade como da quantidade, grandes, médias ou infinitamente pequenas, próximas ou imensamente distantes, exercem, sem o querer e sem mesmo poder pensar nisso, umas sobre as outras e cada uma sobre todas, seja imediatamente, seja por transição, uma ação e uma reação perpétuas que, combinando-se num único movimento, constituem o que chamamos de solidariedade, vida e causalidade universais, (Bakunin, 1988: 57) 

De acordo com o materialismo bakuninista, a variação, dada pela possibilidade permanente de combinações novas e diferentes entre os seres já existentes, possibilita a formação de novos “seres reais”. Sendo assim, a determinação é seguida pela indeterminação relativa, pela possibilidade de combinação de fatos, de ações e reações, engendrando novos produtos. A determinação é a base da realidade material, mas ela se aplica a elementos bem específicos

A própria sociedade humana é um fenômeno da natureza, mas a o fenômeno humano se distingui pela ação criativa do trabalho humano coletivo. Portanto, a condição social, a sociedade é uma determinação da condição humana, ou seja, os seres humanos só existem em sociedade. Porém, os desenvolvimentos da história humana não são determinados; o desenvolvimento é indeterminado, aberto às novas combinações, resultando de multicausalidades. Assim, não existem pré-determinações, causas unilaterais, características inatas que determinem a sociedade ou o homem, pois o determinante do ser é a ação; o que constrói os sistemas são as relações concretas.

Diante da pluralidade de combinações, do movimento contínuo das ações e reações e da multicausalidade dos fenômenos sociais, somente o acúmulo histórico e coletivo da investigação científica é capaz de traçar as respostas aos problemas sociais e científicos. Sendo assim o materialismo bakuninista é pautado no pressuposto de que a realidade é uma totalidade material (compreendida como o conjunto das ações e reações de todos os fatores reais, físico-químicos, biológicos e sociais), portanto, a sociedade é entendida como o centro do processo de ação e reação incessante sobre a natureza, sobre os indivíduos que a compõem e sobre si mesma, dito de outra maneira, a sociedade é o motor da transformação do mundo material. Por isso, o pressuposto de toda análise é a experiência concreta, sendo que a ação, a consciência e as ideias são, simultaneamente, produto e produtoras de novas experiências.

iência e as ideias são, simultaneamente, produto e produtoras de novas experiências. “Assim, o que chamamos de mundo humano não possui outro criador imediato além do próprio homem que o produz” (Bakunin, 1988: 68). O materialismo de Bakunin tem um outro pressuposto: a dialética entre o mundo natural e social. A materialidade da vida humana é a sociedade, construída pela ação criativa do trabalho humano, que permite a superação das forças externas impostas de natureza, condições climáticas, geográficas e biológicas. A vida social, nas suas dimensões política, econômica e cultural, é o resultado de múltiplas interações, dos homens com o meio natural e dos homens entre si

Não precisamos lembrar, o que ninguém contesta, que as diferenças das raças, dos povos, e mesmo das classes e das famílias, são determinadas por causas geográficas, etnográficas, fisiológicas, econômicas (inclusive as duas grandes questões: a das ocupações da divisão do trabalho coletivo da sociedade, do modo de repartição das riquezas e a questão da alimentação, tanto sob aspecto da quantidade quanto da qualidade), assim como por causas históricas, religiosas, filosóficas, jurídicas, políticas e sociais; e todas estas causas, combinando-se de uma maneira diferente para cada raça, nação e, frequentemente, para cada província e comuna, para cada classe e família, dão, a cada uma, uma fisionomia à parte, isto é, um tipo fisiológico diferente, uma soma de predisposições e de capacidades particulares – independente da vontade dos indivíduos que as compõem e que são completamente seus produtos. (Bakunin, 1988: 117-118)


Aqui também destaca-se a dialética entre o particular-geral, entre o todos e cada uma de suas partes. Essa dialética se desenvolve na dialética local-mundial, sujeito-contexto histórico, indivíduo-sociedade.

 Podemos afirmar que Bakunin desenvolveu um materialismo sociológico, pois a materialidade histórica da vida humana é criada pelo trabalho inteligente e livre do homem em sociedade (Bakunin, 1988: 70). O materialismo sociológico possui as seguintes características: 1) é a negação de todas as formas de idealismo/teologismo; 2) sua perspectiva naturalista com a negação do criacionismo; 3) entende a ação, a prática concreta, como determinante do ser; 4) pressupõe a multicausalidade dos fenômenos; 5) compreende a diversidade da vida como resultado de um processo dialético e ininterrupto de ação e reação;

Como se vê a dialética é fundamental para a teoria bakuninista, entretanto, não se trata da dialética tricotômica de Hegel e do materialismo histórico marxista, que pressupõe a tese, a antítese e a síntese. Sendo um proudhoniano, Bakunin recorreu a dialética serial antinômica do anarquista francês. Sergio A. Q. Norte argumenta que Bakunin rompeu com a dialética hegeliana ainda na década de 1840, quando publicou o artigo A reação na Alemanha, onde tereia invertido seus postulados: “Invertendo a primazia de Hegel pela positividade, Bakunin, acentua a negatividade como força criativa, trazendo as abstrações dialéticas para a esfera da prática revolucionária. O novo na história surge pela completa destruição do velho” (Neto, 1988: 25-26). Segundo o sociólogo Georges Gurvitch, a dialética de Proudhon se opõe à dialética hegeliana, uma vez que se trata de uma “dialética antinômica, negativa, antitética, que rejeita qualquer síntese”, “um método dialético que procura buscar a diversidade em todos os seus detalhes” (Gurvitch, 1987: 100). A filiação da dialética bakuninista à dialética proudhoniana fica ainda mais explícita quando Gurvitch explica a dialética do trabalho na perspectiva proudhoniana, segundo a qual o trabalho

pode ser, segundo as circunstâncias, a maior alegria ou o maior sofrimento; o trabalho é a libertação do homem, mas igualmente a ameaça constante de sua escravidão. (…) A dialética inerente ao trabalho torna-se trágica, quando a organização do trabalho é imposta de cima aos trabalhadores, seja pela vontade dos proprietários ociosos (senhores feudais e padres), dos patrões privados ou do Estado e seus funcionários. (Gurvitch, 1987: 103)

A dialética do trabalho em Bakunin tem exatamente essa mesma dinâmica criadora e destruidora:

O Homem só se emancipa da pressão tirânica, que sobre todos exerce a natureza exterior, pelo trabalho coletivo; isso porque o trabalho individual, impotente e estéril, nunca poderia vencer a natureza. O trabalho positivo, aquele que criou todas as riquezas e toda a nossa civilização, sempre foi um trabalho social, coletivo; apenas, até o presente, ele foi iniquamente explorado por indivíduos em detrimento das massas operárias. (Bakunin, 2008: 76).

Bakunin identificou as séries de contradições que se desenvolvem a partir da dialética ação-reação e da dialética criação-destruição na realização do trabalho coletivo. O trabalho é, portanto, ação humana criadora, eminentemente emancipatória, entretanto, a exploração do trabalho é a reação destrutiva das classes dominantes, que converte o trabalho coletivo em escravidão, em fonte de privilégio e riqueza de poucos e em fonte de opressão e miséria de muitos. Mas no conflito concreto da luta de classes o trabalho retorna como emancipatório a partir da ação política da classe trabalhadora, onde a dialética criação-destruição desenvolvese nas séries dominação-resistência, revolução-contrarrevolução, proletariado-burguesia.

O futuro pertence hoje aos trabalhadores: os trabalhadores dos campos, aos trabalhadores das fábricas e das cidades. Todas as classes que estão acima, os eternos exploradores do trabalho das massas populares: a nobreza, o clero, a burguesia, e toda a essa miríade de funcionários militares e civis que representam a iniquidade e o poder maléfico do Estado, são classes corruptas, atingidas pela impotência, doravante incapazes de compreender e querer o bem, poderosas somente para o mal. (Bakunin, 2008: 104). 

Ao contrário do que tentou argumentar Malatesta, no trecho que citamos na introdução

 desse artigo, o materialismo sociológico e a dialética serial de Bakunin não pressupõem pré- determinações, causa primeira, ou determinação em última instância que nos permita afirmar a existência de uma perspectiva determinista ou mecanicista do seu pensamento. No debate sobre o Estado poderemos compreender a dialética entre a política e a economia, e concluir que há uma distância significativa entre a perspectiva bakuninista e a marxista

3. ESTATISMO E A DIALÉTICA ENTRE A ECONOMIA E A POLÍTICA

 Para Bakunin os princípios filosóficos e ideológicos que defendem a existência e legitimidade do Estado são concepções teológicas, seja a teoria do direito divino dos reis, seja a teoria liberal do contrato social ou do socialismo autoritário. O liberalismo burguês pode ter significado uma ruptura com a teoria do “Direito Divino”, mas não rompeu com o teologismo. Para romper com o liberalismo é necessário, portanto, romper com o teologismo. Por isso, Bakunin desenvolveu sua teoria do antiteologismo, que é uma ruptura com o estatismo e, consequentemente, o fundamento do antiestatismo, ou seja, do socialismo, que no programa anarquista é o autogoverno dos trabalhadores

O liberalismo é teológico porque foi construído a partir de pressupostos idealistas, da ficção do contrato social, isto é, da existência de um livre acordo entre os indivíduos para a saída no Estado de natureza para a fundação do Estado e, consequentemente, da sociedade. Na concepção contratualista existe uma fusão entre Estado e sociedade, quer dizer, só existe sociedade humana porque existe Estado.

 Mesmo considerando as diferenças entre os teóricos do Estado-burguês, eles têm em comum a atualização do teologismo. Para Hobbes, Locke, Rousseau e demais contratualistas, a sociedade é a soma dos indivíduos que pela ficção do contrato social saíram do ficcional Estado de natureza. Os indivíduos seriam dotados de características supostamente essenciais e/ou inatas ao homem (“bondade” ou “maldade”). Para Bakunin esses fundamentos são tão falsos quanto a teoria do “Direito Divino”

Dissemos que o homem não é somente o ser mais individual da terra, é também o mais social. Foi um grande erro da parte de J.-J. Rousseau ter pensado que a sociedade primitiva tivesse sido estabelecida por um contrato livre, formado por selvagens. Mas J.-J. Rousseau não é o único que o afirma. A maioria dos juristas e dos publicistas modernos, seja da escola de Kant, seja, de qualquer outra escola individualista e liberal, e que não admite nem a sociedade fundada sobre o direito divino dos teólogos, nem a sociedade determinada pela escola hegeliana como a realização mais ou menos mística da Moral objetiva, nem a sociedade primitivamente animal dos naturalistas, tomam nolens volens, e por falta de outro fundamento, o contrato tácito por ponto de partida. Um contrato tácito! Quer dizer, um contrato sem palavras e consequentemente sem pensamento e sem vontade, um revoltante não-senso! Uma absurda ficção e, mais ainda, um perversa ficção! (Bakunin, 1988: 89).

Segundo o materialismo sociológico, “a sociedade é o modo natural de existência da coletividade humana independente de qualquer contrato”, ao contrário, “o Estado não é um produto imediato da natureza” (Bakunin, 1988: 91). Portanto, o Estado é um fenômeno histórico e não uma determinação da condição humana. Enquanto fenômeno histórico, o Estado assumiu diferentes contornos ao longo da história, sendo assim, o Estado capitalista é uma forma específica que o estatismo assumiu, resultante da ação política da classe burguesa e da dialética entre a economia e a política

É comum analisar as origens do Estado capitalista a partir das revoluções liberais como a Revolução Gloriosa Inglesa (1688), ou Revolução Francesa (1789), ou mesmo a partir da Revolução Industrial (1770), mas Bakunin recorreu a análise da Reforma Protestante do século XVI, para depois analisar o papel da Revolução Francesa.

 Dois fatos históricos, duas revoluções memoráveis haviam constituído o que dominamos mundo moderno, o mundo da civilização burguesa. Uma, conhecida sob o nome de Reforma, no começo do século XVI, havia destruído a pedra angular do edifício feudal, a onipotência da Igreja, ao destruir essa força, ela preparou a ruína do poder independente e quase absoluto dos senhores feudais, que abençoados e protegidos pela Igreja, como os reis, frequentemente mesmo contra os reis, faziam proceder seus direitos diretamente da graça divina; e por isso mesmo ela proporcionou um novo desenvolvimento à emancipação burguesa, lentamente preparada, por sua vez, durante os dois séculos que haviam precedido essa revolução religiosa, pelo desenvolvimento sucessivo das liberdades comunais, e pelo desenvolvimento do comércio e da indústria que haviam sido ao mesmo tempo sua condição e sua consequência necessária. (Bakunin, 2008: 59).

A Reforma Protestante criou as condições necessárias para a derrocada do feudalismo e declínio do poder da Igreja. O desenvolvimento da economia mercantil dos séculos anteriores criou as condições econômicas e sociais para a Reforma ao mesmo tempo em que a ela possibilitou as bases políticas e ideológicas para o desenvolvimento econômico dos séculos posteriores: o Estado do Antigo Regime. “Dessa revolução surgiu uma nova potência, não ainda a da burguesia, mas do Estado, monárquico, constitucional e aristocrático na Inglaterra, monárquico, absoluto, nobiliárquico, militar e burocrático em todo o continente da Europa” (Bakunin, 2008: 60).

Portanto, o anarquista russo identifica na Reforma Protestante a origem de um novo poder e de um novo sistema político: o estatismo, ou seja, o Estado deixou de ser subordinado à Igreja de Roma e passou a se autorreferenciar. O “Direito Divino” estabeleceu a soberania do monarca absolutista, com seu poder procedendo direto de Deus (Bakunin, 2008: 61). As relações internacionais são convertidas em um sistema interestatal, sem a mediação papal

O estatismo erguido sob as ruínas do sistema feudal desenvolveu a “moral de Estado”, ou seja, o Estado tomou o lugar da Igreja e passou a ser proclamado uma instituição divina. “O Estado afirma-se a todos os seus súditos como o objetivo supremo” (Bakunin, 2008: 66).

A estrutura centralizada e burocratizada dos Estados absolutistas, tanto constitucional, quanto monárquico, absorveu os senhores feudais, convertidos em nobreza. Estabeleceu uma nova tirania, não mais aquela dos senhores feudais, mas agora assumindo a forma dos impostos ordinários e extraordinários do Estado (Bakunin, 2008: 63). Essa tirania submeteu a burguesia e o proletariado do campo e da cidade à servidão, sendo que o proletariado ocupando a posição mais subalterna. Assim, nessa estrutura estamental, a burguesia, proprietária da propriedade privada, passa a ter um novo papel social. “Os dois séculos que separaram as lutas da Reforma religiosa daquelas da grande Revolução foram o período heroico da classe burguesa. Tornada poderosa pela riqueza e pela inteligência, atacou audaciosamente todas as instituições da Igreja e do Estado (Bakunin, 2008: 70).

 As contradições da estrutura de estratificação social do Antigo Regime que colocou em oposição as monarquias e a nobreza, de um lado, e a burguesia e o proletariado, do outro lado, eclodiram em 1789, com a Revolução Francesa. Sob a liderança da burguesia, as massas proletárias derrubaram o Antigo Regime, entretanto, as promessas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade não se realizaram. A burguesia não rompeu, e não poderia romper, com a moral de Estado. Na verdade, a classe burguesa recoloca a moral de Estado noutros marcos: na teoria individualista e contratualista, reeditando os pressupostos teológicos do “Direito Divino”, mantendo a subordinação da existência da vida em sociedade à existência do Estado.

A Revolução Francesa marca ascensão da burguesia à condição de classe dominante, proprietária dos meios de produção e do poder do Estado. Aplicando a dialética criaçãodestruição, Bakunin explicou como a grande Revolução se converteu numa contrarrevolução burguesa.

É que essa Revolução foi apenas uma revolução política. Ela havia audaciosamente derrubado todas as barreiras, todas as tiranias políticas, mas havia deixado intactas – havia inclusive programado sagradas e invioláveis – as bases econômicas da sociedade, que foram a fonte eterna, o fundamento principal de todas as iniquidades políticas e sociais. (Bakunin, 2008: 72).

A contrarrevolução burguesa é o marco histórico do sistema capitalista, com a destruição do Antigo Regime e a criação de um novo sistema social, o capitalismo. Do ponto de vista bakuninista, a estrutura do sistema capitalista possui dois pilares fundamentais: a propriedade privada, que determina a exploração do trabalho coletivo do proletariado pela burguesia, e o Estado, que determina a concentração do poder político e, consequentemente, a dominação burguesa. Por isso, Bakunin afirma que a burguesia é um “corpo político e social, economicamente separado da classe operária” (Bakunin, 1979: 16).

Analisando todo esse processo histórico, Bakunin desenvolveu sua teoria do estatismo a partir dos seguintes elementos que caracterizam o Estado moderno: a conquista e a dominação; a exploração do trabalho, o monopólio, o imperialismo e o sistema interestatal.

 O Estado moderno, por sua essência e pelos seus objetivos que se fixa, é por força um Estado militar, e um Estado militar está condenado, não menos obrigatoriamente, a se tornar um Estado conquistador; se ele próprio não se lançar à conquista, pela simples razão de que, por toda parte onde a força existe, é preciso que ela se mostre ou aja. Daí decorre uma vez mais que o Estado moderno deve ser por necessidade grande e forte; é a condição necessária de sua vanguarda. (Bakunin, 2003: 36).

Nesse trecho, destaca-se a conquista e a dominação que remete a formação dos impérios colonias ainda durante os séculos XVI e XVII. Sob a vigência da economia mercantil, a expansão e a dominação colonial foram processos que alimentaram e foram alimentados pela formação dos Estados modernos absolutistas. Assim, a moral de Estado, é a “moral da conquista e da dominação”

Outra característica do Estado moderno está associado a uma estrutura de classes caracterizada pela exploração do trabalho e pelo profundamento das desigualdades socioeconômicas, e pelo seu desenvolvimento burguês. Seja na primeira fase histórica de desenvolvimento do estatismo, entre os séculos XV-XVII, seja na segunda, entre os séculos XVIII-XIX, seja sob a exploração do campesinato pela nobreza, ou do proletariado pela burguesia, o que caracteriza o estatismo é sua tendência de garantir e de ser viabilizado pela exploração da forção coletiva dos trabalhadores.

Do mesmo modo, o Estado outra coisa não é senão a garantia de todas as explorações em proveito de um pequeno número de felizes privilegiados, em detrimento das massas populares. Ele se serve da força coletiva de todos para assegurar a felicidade, a prosperidade e os privilégios de alguns, em detrimento do direito humano de todos. (Bakunin, 2008: 69).

Essas duas caraterísticas não estão dissociadas, muito pelo contrário, pois a conquista e a dominação colonial e imperialista significam a expansão da exploração do trabalho em escala mundial. Determinam a formação de um sistema interestatal, as coalizões entre potências imperiais, e a divisão internacional do trabalho, formada por potências imperiais e nações satélites dos impérios.

Percebe-se que o estatismo tem uma dimensão econômica fundamental. E não se trata de uma dimensão secundária, indireta ou uma subordinação do Estado aos interesses econômicos das classes dominantes. Trata-se, na verdade, do entendimento do Estado como um fator econômico fundamental. Ou seja, existe uma dialética geral entre economia e política e uma dialética mais particular entre a tendência centralizadora dos poderes do Estado moderno, o autoritarismo, com a tendência de centralização monopolista de capitais na grande indústria, nos grandes bancos e grandes empresas comerciais. Há uma correspondência entre centralização de poderes e concentração de capitais.

Esta reação nada mais é senão a realização acabada do conceito antipopular do Estado moderno, o qual tem por único objetivo a organização, na mais vasta escala, da exploração do trabalho, em proveito do capital, concentrada em pouquíssimas mãos (…). A indústria capitalista e a especulação bancária modernas necessitam, para se desenvolverem em toda a amplitude desejada, destas grandes centralizações estatais, que, sozinhas, são capazes de submeter à sua exploração os milhões e milhões de proletários da massa popular. (Bakunin, 2003: 35).

Considerando também a dialética local-global, o capital monopolista que domina as economias nacionais se converte, em escala internacional, no capital imperialista. Na teoria bakuninista do Estado moderno, o imperialismo e o monopolismo possuem uma relação dialética e orgânica. Dialética porque é contraditória, orgânica porque indissociável.

 Dissemos e demonstramos, antes, a sociedade só pode constituir e permanecer um Estado se ela se transforma em Estado conquistador. A mesma concorrência que, no plano econômico, esmaga e devora os pequenos e até mesmo os médios capitais, estabelecimentos industriais e propriedades fundiárias e casas de comércio, esmaga e devora os pequenos e médios Estados, em proveito dos Impérios. Doravante, todo Estado que não se contentar em existir no papel e pela graça de seus vizinhos, pelo tempo que estes quiserem tolerar, mas desejar ser um Estado real, soberano, independente, deve ser necessariamente um Estado conquistador. (Bakunin, 2003: 66).

Portanto, na teoria de Bakunin, o estatismo, enquanto etapa histórica, recobre duas tendências: em primeiro lugar, e de maneira fundamental, a relação dialética entre centralização estatal e monopolismo econômico, de maneira que uma alimenta e reforça a outra. É impossível então pensar o estatismo sem pensar o aumento das taxas de exploração e das formas de extração de mais valia absoluta em escala mundial. Em segundo lugar e simultaneamente, essa dialética centralização/monopólio é expressão e consequência do caráter que o Estado moderno assumiu com o desenvolvimento do estatismo, ou seja, trata-se do seu caráter burguês7

 Esse caráter burguês do Estado capitalista se materializa num sistema interestatal marcado, obviamente, por profundas contradições, uma vez que, o próprio sistema de Estados é constituído pelo conflito e pela competição entre os Estados na luta pela hegemonia e pela supremacia do sistema mundo. Considerando a dialética entre o local e o global, a teoria bakuninista aponta que a centralização de poderes no Estado se desenvolve, em escala internacional, na centralização de poderes políticos, militares e econômicos no sistemas interestatal, ou seja, os Estados que centralizam os maiores se convertem em potências imperiais. Assim, a noção de Império é utilizada para caracterizar um tipo particular de Estado, uma potência militar e geopolítica que consegue a hegemonia numa região e que disputa a supremacia no sistema mundo. Os Impérios entram em conflito entre si, guerreando pelo domínio do sistema internacional de Estados, assim como entram em conflito com às potências emergentes e estão em guerra constante com os Estados satélites que lutam pela independência.

As guerras de independência e libertação nacional são parte das contradições do sistema interestatal. O conflito entre potências imperialistas marcam significativamente o processo de independência das nações americanas, como o apoio da França aos Estados Unidos na guerra contra a Inglaterra. Ou ainda, a influência determinante das guerras napoleônica na independência da América espanhola. Entretanto, mesmo Impérios rivais se unem diante da insurgência do proletariado, como a aliança entre a burguesia francesa e a burguesia prussiana, que estavam em guerra pela hegemonia do sistema interestatal, mas se uniram para massacrar a revolução proletária da Comuna de Paris.

Portanto, se a dominação e a exploração burguesa é a conquista e a dominação dos Estados imperialistas e do capital monopolista, a revolução social deve ser proletária, internacional e antiestatista. São esses aspectos estratégicos e programáticos da teoria bakuninista que abordaremos a seguir

4. A ESTRATÉGIA E O PROGRAMA REVOLUCIONÁRIOS ANARQUISTA

A teoria da revolução de Bakunin é parte constitutiva de sua teoria social; do materialismo sociológico, da dialética serial antinômica, da teoria do capitalismo e do estatismo. Portanto, a revolução social deve ser uma revolução proletária, internacional e antiestatista

A revolução social se distingue das revoluções políticas, como a Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas, pois essas últimas significam somente mudanças nos regimes políticos, novas classes dominantes assumem a direção do Estado, mas mantêm intacto o sistema econômico, ou seja, as estruturas de exploração do trabalho. E, conclui Bakunin, “a liberdade política sem a igualdade econômica, ou em outras palavras, a liberdade no Estado, é uma farsa” (Bakunin, 2003: 72). Assim, a teoria bakuninista define a revolução social como a realização da “real igualdade social”, ou seja, da “igualdade política, social e econômica, simultaneamente” (Bakunin, 1979: 62).

Se o capitalismo é um sistema internacional, ancorado no sistema interestatal e no imperialismo, a revolução social deve ser igualmente internacional. O caráter internacional da revolução foi destacado por Bakunin ao retomar o debate sobre a questão eslava e as demais questões de libertação nacional:

A revolução, porém, não pode ser obra de um único povo; por natureza, esta revolução é internacional, o que significa dizer que os eslavos, que aspiram à sua liberdade, devem, em nome desta, unir suas aspirações e a organização de suas forças nacionais às aspirações e à organização das forças nacionais de outros países; o proletariado eslavo deve entrar em massa na Associação Internacional dos Trabalhadores. (Bakunin, 2003: 74).

Como se vê a questão nacional, as guerras de independência e as lutas de libertação nacional, devem, segundo a teoria baskuninista, ter um caráter classista e socialista. Portanto, recusa aliança como frações da burguesia nacional sob a bandeira do nacionalismo e sob o pretexto de lutar pela independência e/ou contra um exército invasor. A luta dos trabalhadores tem que ser pelo socialismo.

 Debatendo o caráter internacional da revolução, o anarquista russo explicitou que a revolução social é o projeto político resultante da luta concreta de um sujeito social e histórico determinado: o proletariado do campo e da cidade. No sistema capitalista, o proletariado é a única classe capaz de romper com a propriedade privada e com o Estado ao mesmo tempo. O conjunto das frações burguesas assumem um papel efetivamente contrarrevolucionário. Somente o proletariado, pelas suas condições materiais e objetivas, pela sua condição de classe trabalhadora, é capaz de construir e assumir como seu o programa socialista revolucionário.

Falamos da grande massa operária que, moída pelo seu trabalho quotidiano, é ignorante e miserável. Esta, sejam quais forem os preconceitos políticos e religiosos que lhes tenham inculcado e mesmo feito prevalecer na sua consciência, é socialista sem o saber; ela é no mais profundo de si própria, e pela própria força de sua posição, mas seriamente, mas realmente socialista do que todos os socialistas científicos e burgueses juntos. Ela é socialista por todas as condições da sua existência material”. (Bakunin: 1979: 59)


Como se observa, para a teoria bakuninista a consciência revolucionário não é externa à classe trabalhadora, mas é a realização da própria ação política do proletariado na sua luta cotidiana contra a exploração e opressão burguesa. Usando como referência a palavra de ordem da AIT, a emancipação dos trabalhdores deve ser obra dos próprios trabalhadores, Bakunin entendeu que a emancipação dos trabalhadores será pela prática e pela experiência concreta, ou seja, pela “luta solidária dos operários contra os patrões” (Bakunin: 1979: 59).

 Portanto, a estratégia revolucionária bakuninista estabelece uma relação dialética entre as lutas imediatas, por melhores condições de trabalho, aumento salarial, justiça, direitos, etc, travadas pelos trabalhadores organizados em associações, sindicatos, cooperativas, movimentos, etc, e os desafios históricos da classe trabalhadora, isto é, a luta emancipacionista de ruptura com a ordem burguesa.

A análise de Bakunin sobre o movimento grevista organizado pela AIT é elucidativa da sua teoria revolucionária. O primeiro aspecto destacado é a luta pelas reivindicações econômicas:

 Os fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores agiram com extraordinária sensatez ao evitar assentar em princípios políticos e filosóficos, como base dessa associação, e ao fundar-se primeiramente apenas na luta exclusivamente econômica do trabalho contra o capital, pois estavam certos de que, a partir do momento em que um operário se coloca neste campo, a partir do momento em que ganhando confiança nos seus direitos e na sua força numérica, se insere com os seus companheiros de trabalho numa luta solidária contra a exploração burguesa, será necessariamente levado, pela própria força das coisas, e pelo desenvolvimento dessa luta, a reconhecer rapidamente todos os princípios políticos socialistas e filosóficos da Internacional, princípios que não são mais, com efeito, que a justa expressão de seu ponto de partida, do seu fim. (Bakunin, 1979: 57).

As lutas reivindicativas são centrais, pois as contradições com a burguesia são inconciliáveis no capitalismo. As formas de organização para a resistência e a solidariedade de classe resultantes delas permitem o acirramento do conflito entre as classes. As greves expressão esse acirramento.

As notícias relativas ao movimento operário europeu podem resumir-se numa palavra: greves. Na Bélgica, greve dos tipógrafos em várias cidades, greve dos fiandeiros em Gande, greve dos tapeceiros em Bruges; na Inglaterra, greve iminente dos distritos manufatureiros; na Prússia, greve dos mineiros de zinco; em Paris, greve dos pedreiros e pintores; na Suíça, greves em Basileia e em Genebra. À medida que avançamos as greves multiplicam-se. Que quer dizer isto? Que a luta entre o trabalho e o capital se aguça cada vez mais, que a anarquia econômica é cada vez mais profunda, e que caminhamos a passos largos para o fim inevitável a que nos conduz esta anarquia: a revolução social. (Bakunin, 1979: 10-11).

É importante ressaltar que a dupla greve de Genebra e as demais greves destacadas por Bakunin ocorreram num contexto de expansão da Associação Internacional do Trabalhadores, enquanto alternativa de organização e de luta da classe trabalhadora. A multiplicação das greves fazia parte da estratégia da própria AIT, não por acaso, provocaram grande reação dos Estados e da burguesia.

 Assim, Bakunin recorreu mais uma vez à teoria proudhoniana, para a firmar que as greves, e demais formas de luta dos trabalhadores, pressupõem o desenvolvimento da força coletiva dos trabalhadores (Bakunin, 1979: 11), isto é, pressupõem a organização e o desenvolvimento de estratégias de resistência e de organização do proletariado enquanto sujeito coletivo. As lutas locais, as reivindicações imediatas, as greves parciais deixam de ter um fim em si mesmas quanto são o resultado da ação política de uma organização mais ampla dos trabalhadores e, consequentemente, passam a fazer parte de um processo de luta que tem um objetivo histórico: a emancipação da classe trabalhadora

Portanto, para o desenlace revolucionário de fato é fundamental levar a organização dos trabalhadores às últimas consequências e radicalizar nas formas de luta, desenvolver a força coletiva dos trabalhadores a partir de experiências concretas de luta e de solidariedade classista. A solidariedade de classe deve romper as barreiras das categorias e as fronteiras nacionais. Por isso, Bakunin estabelece a estratégia da greve geral insurrecional, ou seja, a conversão das lutas de reivindicativas e de resistência em uma luta ofensiva contra o Estado e o capital.

Quando as greves se alargam, se interpenetram, é porque está próxima o momento da greve geral; e uma greve geral, com as ideias de libertação que reinam hoje no proletariado, só pode conduzir a um grande cataclisma que dará uma nova estrutura à sociedade. Não há dúvida que ainda lá não chegamos, mas tudo nos conduz a tal. Só é necessário que o povo esteja preparado, que não se deixe enganar pelos faladores e pelos sonhadores, como em 48, e para tal é necessário que se organize coerente e seriamente. (Bakunin, 1979: 11).

A greve geral na teoria bakuninista é sinônimo de insurreição. Trata-se da ofensiva da classe trabalhadora contra a ordem burguesa, onde a dialética criação-destruição estabelece a destruição do sistema capitalista e a criação da sociedade socialista. Assim, a greve geral tem objetivos programáticos definidos: a abolição da propriedade privada e a destruição do Estado, como condições necessárias para a emancipação dos trabalhadores. Bakunin definiu com precisão esses objetivos programáticos numa carta endereça ao companheiro Albert Richard, às vésperas da insurreição da Comuna de Paris:

 Se Paris sublevar-se e triunfa, terá o dever e o direito de proclamar a completa liquidação do Estado político, jurídico, financeiro e administrativo – a bancarrota pública e privada, a dissolução de todos os poderes, de todos os serviços, de todas as funções e de todas as forças do Estado, o incêndio ou o júbilo pelo incêndio de todos os papéis, documentos privados e públicos. Paris apressar-se-á naturalmente a organizar-se por si mesma, bem ou mal, revolucionariamente, depois que os trabalhadores reunidos em associações tiverem apoderado-se de todos os instrumentos de trabalho, capitais e todos os tipos de prédios. Permanecendo armados e organizados por ruas e por bairros, eles formarão a federação revolucionária de todos os bairros, a comuna federativa. (Bakunin, 2012: 96).

Nesse trecho Bakunin resumiu o programa anarquista, não só estabelecendo a destruição do Estado e da propriedade privada, mas, especialmente, definindo o sistema da federação livre das comunas como sistema de organização da sociedade socialista. Esse sistema federativo permite a organização da sociedade de baixo para cima, determinado a igualdade política assentada sob a igualdade econômica. Trata-se do autogoverno dos trabalhadores, cuja primeira experiência foi a própria Comuna de Paris, reivindicada por Bakunin como a negação do Estado capitalista.

Sou um partidário da Comuna de Paris, que, por ter sido massacrada, sufocada em sangue pelos carrascos da reação monárquica e clerical, não por isso deixou de se fazer mais viva, mais poderosa na imaginação e no coração do proletariado da Europa; sou seu partidário em grande parte porque foi uma negação audaciosa, bem pronunciada, do Estado. (Bakunin, 2008: 118).

Bakunin delineou o programa do autogoverno dos trabalhadores ainda em 1864, durante a elaboração dos “documentos secretos” da Fraternidade, onde o socialismo e o sistema federativo foram apresentados como a base para a igualdade política e econômica.

A organização política e econômica da vida social deve partir, por consequência, não mais como hoje, de cima para baixo e do centro à circunferência, por princípios de unidade e de centralização forçada, mas de baixo para cima e da circunferência ao centro, por princípio de associação e de federação livres. (Bakunin, 2009: 20). 

Como se observa, no programa bakuninista da sociedade socialista não existe fase de transição, período de um Estado provisório de qualquer natureza. O socialismo, sendo o autogoverno dos trabalhadores, é a negação de qualquer forma de Estado e, consequentemente, de qualquer tipo de centralização política que significaria, necessariamente, a reprodução da desigualdade política.

 A centralização política produz desigualdade política porque restringe o acesso às decisões e exige a constituição de uma burocracia estatal civil e militar. Considerando a dialética entre política e economia, a desigualdade política engendra desigualdades econômicas e sociais, portanto, significa a manutenção da sociedade de classes.

Na sociedade anarquista, ou melhor, na sociedade socialista o autogoverno dos trabalhadores é exercido, obviamente, diretamente pelos trabalhadores que controlam a produção e determinam as decisões políticas pelas associações de base comunais organizadas federativamente. Portanto, o autogoverno não é uma quimera, mas sim um projeto político de sociedade da classe trabalhadora

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: FORÇAS COLETIVAS E REVOLUÇÃO SOCIAL

 Entre as principais características do materialismo sociológico de Bakunin pode-se destacar a dialética da ação, na verdade, a a dialética da ação-reação que se desdobra nas séries dialéticas criação-destruição, resistência-dominação e revolução-contrarrevolução. Assim, é pela a ação coletiva, ou melhor, é pelo o trabalho coletivo que os homens constroem as sociedades e é pela ação violenta e política das classes dominantes que o trabalho coletivo é convertido em fonte de exploração e opressão das classes trabalhadoras. Entretanto, resultante das contradições sociais, a ação coletiva da classe trabalhadora para resistir às diversas formas de exploração e opressão, converte o trabalho coletivo em fonte de emancipação e ruptura com a ordem dominante.

Portanto, segundo o materialismo sociológico, o trabalho coletivo e a ação coletiva da classe trabalhadora são entendidas enquanto força coletiva, numa apropriação desse conceito proudhoniano8 . Na teoria proudhoniana, a coletividade possui uma força própria, que não se resume a soma das forças individuais, mas está para além das individualidades. E, dialeticamente, as forças coletivas são criadoras e destruidoras, como explica George Gurvitch:

Outro aspecto do movimento dialético próprio da realidade social é o das “forças coletivas”. Essas forças coletivas são irredutíveis às forças individuais e não consistem em absoluto na soma delas, pois em um grupo, em uma classe ou em uma sociedade, os esforços associativos produzem forças centuplicadas. Ora, essas forças coletivas podem tornar-se destrutivas, sombrias, opressoras e ameaçar a própria existência da sociedade e, sobretudo, seu impulso para a criação. (GURVITCH, 1987: 102).

A noção de força coletiva tem uma dimensão socioeconômica e uma dimensão sociopolítica. A primeira é desenvolvida pelo anarquista francês na sua obra O que é a propriedade?

Diz-se que o capitalista pagou as jornas dos operários; para ser exato é preciso dizer que o capitalista pagou tantas vezes uma jorna quantos operários empregou por dia, o que não é exactamente a mesma coisa. Nunca pagou a força imensa que resulta da união e da harmonia dos trabalhadores, da convergência e da conjugação de esforços. Duzentos soldados levantaram desde a base, em poucas horas, o obelisco de Luqsor; um só homem tê-lo-ia conseguido em duzentos dias? No entanto, pelas contas do capitalista, a soma dos salários foi a mesma. Bem, um deserto para cultivar. um casa  para construir, uma manufactura para explorar representa um obelisco para erguer, uma montanha para mudar de lugar. A fortuna mais pequena, o menor estabelecimento, a conservação da indústria mais insignificante exige um concurso de trabalhos e talentos tão diversos que um único homem nunca alcançaria. É espantoso como os economistas nunca o observaram. Façamos, pois, o balanço do que o capitalista recebeu e do que pagou. (PROUDHON, 1975: 100-101).

Portanto, a força coletiva dos trabalhadores e produtora de valor, entretanto, os frutos do trabalho coletivo são explorados pela classe burguesa. O trabalho coletivo não pode ser pago na forma de salários individuais, por isso, a extração da mais-valia, imposta pelo regime da propriedade privada, significa a exploração da força coletiva dos trabalhadores. Não se pode pagar com salários individuais aquilo que coletivamente produzido, pois a força coletiva não é a soma dos esforços individuais. Por isso, a força coletiva no plano socioeconômico, representa uma contradição direta com a existência da propriedade privada. A justiça somente será alcançada quando os trabalhadores se apoderarem da totalidade do trabalho coletivo, ou seja, com a abolição da propriedade privada.

Como foi visto em páginas anteriores, Bakunin analisa como as classes dominantes exploram as forças coletivas da classe trabalhadora. Mais ainda, Bakunin argumenta que o desenvolvimento do capitalismo monopolista e a expansão da dominação imperialista estabelecem a exploração das forças coletivas em escala global. Aqui está um dos aspectos destrutivos das forças coletivas: a submissão das massas trabalhadoras à exploração.

 A dimensão sociopolítica da força coletiva pode ser bem identificada na obra A capacidade política da classe operária, obra póstuma de Proudhon. Na teoria proudhoniana, a dimensão sociopolítica da força coletiva não se refere somente a capacidade de ação coletiva dos grupos e classes, mas também ao processo de construção da consciência coletiva da desigualdade e do lugar das classes na sociedade, que está presente na capacidade política das coletividades.

Para um sujeito, indivíduo, coorporação ou coletividade, capacidade política, três condições fundamentais são requisito: 1) que o sujeito tenha consciente de si mesmo, de sua dignidade, o seu valor, da posição que ocupa na sociedade, o papel que desempenha, de suas funções e dos direitos que aspira, dos interesses que representa ou personifica; 2) que, como resultado dessa plena consciência de si mesmo, afirme sua ideia, ou seja, saiba expressar pela palavra e explicar a razão, não só em princípio, mas também em todas as suas consequências a lei do seu ser; 3) que esta ideia, sentada como uma profissão de fé, possa, se as circunstâncias o exigirem, sempre tirar conclusões práticas. (PROUDHON, 1989 [1865]: 56).

O processo de construção da autoconsciência, ou seja, da consciência do pertencimento a uma coletividade, é parte constitutiva da força coletiva, uma vez que ela é o elemento que compõem os processos sociais e produtivos, enquanto unidade de ação diferente dos indivíduos e dos agregados de indivíduos e, consequentemente, anterior e exterior aos indivíduos. A coletividade, na qualidade de força coletiva, se autorreferência, se reconhece como coletividade e se legitima, tendo uma consciência para si, ou seja, dos seus próprios interesses, e, fundamentalmente, converte essa autoconsciência em práticas políticas e ações coletivas concretas, assim assumindo a existência por si, isto é, se constituindo em sujeito político coletivo

Desse modo, na teoria bakuninista, na qualidade de força coletiva, a classe trabalhadora é sujeito histórico e, portanto, é portadora da sua consciência de classe. A consciência da classe não é um fenômeno exterior à própria classe, mas sim o resultado da suas condições materiais de existência, da suas experiências concretas enquanto classe, das suas lutas diárias contra a exploração e opressão imposta pelas classes dominantes.

 A organização e a luta dos trabalhadores é, na teoria bakuninista a ação de uma força coletiva, condições necessárias dos sujeitos históricos responsáveis pela constituição e pela história das sociedades humanas. A força coletiva em Bakunin não é outra coisa se não o livre exercício da vontade. Portanto, a ação classista significa a ruptura da condição de “objeto”, de massa amorfa para a condição de sujeito. A vontade é a vontade coletiva, a vontade política, a vontade que existe na prática concreta.

Considerando a tese bakuninista, a noção de ação espontânea passa a ter um sentido diferente, isto é, passa a ser entendida como ação classista, isto é, “a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima” (BAKUNIN, 2003: 47). Em outras palavras, na perspectiva bakuninista ação espontânea não é sinônimo de ação instintiva, desprovida de direção consciente, porque o “instinto” é visto como um reflexo mecânico muito elementar, portanto não se explica a ação humana, pois essa possui uma reflexão sobre sua própria ação. A ação humana é, na verdade, o exercício da vontade

O homem cria este mundo histórico pela força de uma atividade que encontrais em todos os seres vivos, que constitui o próprio fundamento de qualquer vida orgânica e que tende a assimilar e transformar o mundo exterior segundo as necessidades de cada um, atividade, consequentemente, instintiva e fatal, anterior a qualquer pensamento, mas que, iluminada pela razão do homem e determinada por sua vontade refletida, transforma-se nele e para ele em trabalho inteligente e livre. (BAKUNIN, 1988: 70).

Portanto, segundo a sociologia bakuninista, a ação espontânea das massas é a livre vontade da classe trabalhadora. A luta concreta é, necessariamente, uma luta consciente, detentora de intencionalidade, resultante do processo de autoconsciência. Sendo assim, não existem greves, movimentos, motins, qualquer expressão de revolta popular desprovidas de direção consciente. Sendo uma ação de classe, toda e qualquer revolta e forma de resistência são expressões concretas da consciência da classe trabalhadora, ou seja, a ação da classe por si mesma.


Esse entendimento não significa, no plano político, abdicar da luta ideológica, uma vez que as ideologias da classe dominante são ideologias hegemônicas. Por isso, é papel das organizações da classe trabalhadora fazer a luta contra hegemônica. Bakunin destaca o trabalho ideológico da Associação Internacional dos Trabalhadores: “Que teve de fazer a Internacional? Teve primeiramente de afastar as massas operárias da política burguesa, teve de eliminar do seu programa todos os programas políticos burgueses” (BAKUNIN, 1979:56).


Para entender melhor o lugar da noção de força coletiva na teoria sociológica e revolucionária bakuninista, é importante considerar a analisar de Bakunin sobre a Guerra Franco-Prussiana em 1870, no texto Cartas a um francês sobre a crise atual. Assim, sua teoria da revolução social, bem como das condições necessárias à realização de uma insurreição proletária a partir da greve geral revolucionária, é elaborada mediante o estudo de um processo histórico particular, o desenvolvimento das revoluções francesas, e da crítica das teorias que identificavam as revoluções burguesas como etapas anteriores e necessárias à revolução socialista. As revoluções burguesas, como já foi exposto, foram revoluções políticas, isto é, alteraram a posição das classes dirigentes, mas deixaram intactas as estruturas de exploração do trabalho, portanto, foram, na verdade contrarrevoluções. Somente a revolução social, uma vez que é capaz de destruir simultaneamente as estruturas de exploração e dominação, pode estabelecer um novo sistema social, estruturado na liberdade e na igualdade.

Ao realizar uma análise sociológica do conflito de classes e da crise política francesa desencadeada pela Guerra Franco-Prussiana, o anarquista russo aplicou seu método materialista sociológico e suas teorias sobre o estatismo, sobre a propriedade privada e o papel das classes sociais e partidos diante daquele contexto. A partir desse estudo, conclui que a classe trabalhadora do campo e da cidade seria a única classe com capacidade política para levar a revolução social às suas últimas consequências, uma vez que os burgueses e os partidários do comunismo autoritário estatista eram unânimes em defender o Estado como saída para a crise (BAKUNIN, 1907: 172). Ao contrário da burguesia, os trabalhadores tinham a capacidade de romper definitivamente com a ordem instituída.

A única que pode salvar a França, em meio aos perigos mortais, internos e externos, que agora a ameaça, é a sublevação espontânea e livre, livre de compromissos, apaixonada, anárquica e destrutiva, das massas populares de toda o território francês. (…) Creio que as únicas classes agora capazes de uma insurreição tão poderosa são os trabalhadores e os camponeses. (BAKUNIN, 1907: 215-216).

Como é possível observar a dinâmica da luta de classes é entendida a partir da dialética criação-destruição, mais precisamente do desdobramento na dialética revoluçãocontrarrevolução, ou seja, entre a contrarrevolução burguesa e revolução social proletária. Enquanto a burguesia e os reformistas se apegam ao Estado como único caminho possível e, consequentemente, capitulam diante da reestruturação e manutenção da ordem, os trabalhadores do campo e da cidade apontam para a destruição da ordem vigente e para a construção do autogoverno dos trabalhadores.

 6. BIBLIOGRAFIA Bakunin, Mikhail. Carta a Albert Richard. In Samis, A. e Tavares, M. (orgs). Anarquismo e sindicalismo. Rio de Janeiro, SINDSCOPE, 2012. _______. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário; Ícon, 2003. _______. Federalismo, socialismo, antiteologismo. São Paulo, 1988. _______. Oeuvres Complètes. International Institute of Social History, Netherlands Institute for Scientific Information Services, Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences, 2000. (CD-ROM). _______. O princípio do Estado e outros escritos. São Paulo, Hedra, 2008. _______. O socialismo libertário. São Paulo, 1979. _______. Oeuvres – Tomo II. Paris, Stock, 1907. (Biblioteque Sociologique, n° 38). Bottomore, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001. Carr, E. H. Bakunin. 2ª edición. Ediciones Grijalbo: Barcelona; México, 1972. Cole, Georg Douglas H. Historia del pensamiento socialista II: marxismo y anarquismo – 1850-1890. México, Fondo de Cultura Económica, 1974. Dolléans, Édouard. Histoire du mouvement ouvrier, Tome I : 1830-1871. Québec, Édition électronique, 2003. Ferreira, Andrey Cordeiro. Materialismo, anarquismo e revolução social: o bakuninismo como filosofia e como política do movimento operário e socialista. In XXVII Simpósio Nacional de História. ANPUH, Natal, 2013. _______. Trabalho e ação: o debate entre Bakunin e Marx e sua contribuição para uma sociologia crítica contemporânea. Revista Em Debate n. 4 (2010): 2º semestre 2010. Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2002. Gurvitch, George. Dialética e sociologia. São Paulo, Vértice , 1987. Malatesta, Errico. Escritos revolucionários. Editora Humana, 2010. McLaughlin, Paul. Mikhail Bakunin: The Philosophical basis of his anarchism. New York, Algora Publishing, 2002. Nettlau, Max. Miguel Bakunin, la Internacional y la Alianza en Epaña: 1868-1873. 3ª edición. Madrid, La Ediciones de La Piqueta, 1977. Norte, Sergio A. Q. Bakunin: sangue, suor e barricada. São Paulo, Papirus, 1988. Proudhon, Pierre-Joseph. De la Capacité politique des classes ouvrières. Éditions du Trindent, Paris, 1989 [1865]. _______. O que é a propriedade ? 2ª edição. Lisboa, Editorial Estampa, 1975. Reis Filho, Daniel Aarão. O Manifesto e a revolução em 1848. In Reis Filho, Daniel Aarão (org.). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abrano, 1998. Thomas, Paul. Karl Marx and the anarchists. Routledge & Kegan Paul, London, 1980.

domingo, 17 de julho de 2016

A Guerra Civil na França: Marx Antiestatista?


2° Edição

Artigo A Guerra Civil na França: Marx Antiestatista?

The Civil War in France, Marx anti-statist?

 La Guerra Civil en Francia, Marx antiestatista? 

Felipe Corrêa





Resumo 

O artigo analisa A Guerra Civil na França, de Marx, com o objetivo de responder duas questões fundamentais: Essa obra possui elementos político-doutrinários capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política? Em caso positivo, possuiriam esses elementos uma base antiestatista? As questões são motivadas pelas distintas interpretações dessa obra marxiana, as quais são apresentadas e brevemente discutidas. A pesquisa é teórica e trabalha com a hipótese de que, em A Guerra Civil na França, Marx desenvolveu uma teoria da revolução e uma estratégia política que sustentaram não somente uma crítica radical e libertária aos aspectos dominadores do Estado, mas também uma proposta autogestionária de que ele fosse suprimido por meio de um processo revolucionário da classe trabalhadora. Por meio de uma análise da produção marxiana, em especial de A Guerra Civil na França, que constitui o foco central, busca-se verificar em que medida essa hipótese é correta. Além disso, utilizam-se escritos de Marx anteriores e posteriores a esse, assim como textos de interpretes e comentadores, visando subsidiar os resultados em questão. A hipótese é refutada. Conclui-se não haver bases seguras para afirmar Artigo A Guerra Civil na França: Marx Antiestatista? The Civil War in France, Marx anti-statist? La Guerra Civil en Francia, Marx antiestatista? Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 212 que A Guerra Civil na França possui elementos político-doutrinários capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política. Afirma-se, ainda, não ser possível transformar, automaticamente, a análise de Marx acerca daquilo que foi o fenômeno da Comuna de Paris, naquilo que deveria ser uma teoria da revolução ou uma estratégia política recomendada para o movimento internacional dos trabalhadores. Posições ulteriores, em especial no contexto da cisão da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1872, tendem a reforçar o argumento de que há certa continuidade entre as posições de Marx posteriores à Comuna e àquelas desenvolvidas no contexto de 1848, que sustentam um projeto estatista de transformação social.

 Palavras-chaves: Karl Marx. A Guerra Civil na França. Teoria da revolução. Estratégia política. Antiestatismo. 



Abstract 

The paper analyzes Marx’s The Civil War in France, aiming to answer two fundamental questions: Does this work has political and doctrinal elements capable of sustaining a theory of revolution and a political strategy? If so, do these elements possess an anti-statist basis? The questions are motivated by the different interpretations of this Marxian work, which are briefly presented and discussed. The research is theoretical and develops the hypothesis that, in The Civil War in France, Marx developed a theory of revolution and a political strategy that contained not only a radical and libertarian critique of the dominant aspects of the state, but also a self-management proposal that it was suppressed by means of a working class revolution. Through an analysis of Marx’s production, particularly of The Civil War in France, which is the central focus, we seek to ascertain in which extent this hypothesis is correct. Furthermore, we use Marx’s writings before and after this, as well as texts of interpreters and commentators, in order to support the results in question. The hypothesis is refuted. We conclude that there is no sound basis for claiming that The Civil War in France has political and doctrinal elements capable of supporting a theory of revolution and a political strategy. We also affirm that it is not possible to transform, automatically, Marx’s analysis about what was the phenomenon of the Paris Commune, in what should be a theory of revolution or a suggested political strategy for the international labor movement. Subsequent positions, particularly in the context of the breakup of the International Workingmen's Association in 1872, tend to reinforce the argument that there is some continuity between the positions of Marx after the Commune and those developed in the context of 1848, supporting a statist project of social transformation. 

Keywords: Karl Marx. The Civil War in France. Theory of revolution. Political strategy. Antistatism.




Marx, Teoria da Revolução e Estratégia Política 

Sabe-se que a obra de Karl Marx, se analisada em sua totalidade, possui ênfase em algumas questões, abordadas mais profundamente que outras. Dentre elas, encontra-se a teoria do modo de produção capitalista, presente na obraprima marxiana, O Capital. Há outras que, entretanto, foram menos desenvolvidas e que não tiveram prioridade por parte de Marx; tal é o caso das questões que envolvem elementos político-doutrinários, capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política com ela condizente. Certamente há, na produção de Marx, reflexões que permitem certa articulação nesse sentido; no entanto, parece inegável que a elas não foi concedida a mesma prioridade que outras. Perry Anderson (1976: 11-12), em concordância, coloca que Marx não “deixou atrás de si uma teoria (...) da estratégia e da tática da luta socialista revolucionária por um partido da classe operária que derrubasse esse Estado”; no máximo, “limitou-se a transmitir algumas antecipações enigmáticas nos anos quarenta e alguns lacônicos princípios trinta anos mais tarde”



.Em termos históricos, essas antecipações e princípios, não exaustivamente desenvolvidos, possibilitaram distintas interpretações por parte de marxistas que, nos termos de Ricardo Musse (2000: 82), buscaram “complementar o legado de Marx em conexão com uma interpretação própria de sua obra”. Nessa busca, coforme aponta este autor, as contribuições e interpretações de Friedrich Engels foram relevantes e não deixaram de influenciar os rumos da interpretação da obra marxiana como um todo.

Para além da clássica disputa entre o marxismo da Segunda e da Terceira Internacional, que distinguiu as proposições da socialdemocracia alemã e do bolchevismo para a conquista do socialismo, há outra questão importante, que diz respeito ao “estatismo” de Marx.

Marx Estatista? 

Parece evidente que, em toda sua obra, Marx elabora uma crítica do Estado moderno e que, a partir de A Ideologia Alemã, o relaciona à dominação de classes capitalista. Se já em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Marx destaca a separação-oposição entre sociedade civil e Estado e critica a dominação da burocracia, as posições de A Ideologia Alemã e do Manifesto Comunista relacionam diretamente o Estado às classes dominantes; o Estado é a forma que uma classe dominante faz valer seus próprios interesses, o Estado administra os negócios da burguesia. Mesmo em outros momentos, como em O 18 Brumário de Luís Bonaparte ou mesmo em O Capital, não há dúvidas de que o Estado, em sua forma moderna, capitalista, burguesa constitui objeto de duras críticas. Mesmo que de maneira menos constante, também se encontram evidências de que, Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 215 para Marx, em uma sociedade comunista, o Estado, o poder político, não mais existiria.  

A classe laboriosa substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo e não haverá mais poder político propriamente dito, porque o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil. (Marx, 2004: 215)

A questão sobre o estatismo de Marx, portanto, não deve ser colocada em relação às suas críticas do Estado moderno e nem às suas proposições de sociedade futura. A presença ou não desse estatismo deve ser buscada em seus elementos de teoria da revolução e estratégia política. Poder-se-ia, por isso, colocar a indagação de maneira mais pertinente, nos seguintes termos: Qual é o lugar que o Estado ocupa na teoria da revolução e na estratégia política marxiana? Possui a conquista do Estado presença incontornável nesse esquema teórico-estratégico? O estatismo define-se como a sustentação teóricoestratégica da necessidade de conquista do Estado para o estabelecimento de uma sociedade comunista, em que o capitalismo e as classes sociais não mais existiriam.

 Em geral, a resposta do marxismo clássico a essas perguntas remete-se à afirmação de Marx, no Manifesto Comunista, de que “o objetivo mais próximo dos comunistas é o mesmo de todos os demais partidos proletários: formação do proletariado em classe, derrubada da dominação burguesa, conquista do poder político pelo proletariado”. (Marx e Engels, 2010: 76) Nesse texto, os conceitos de poder político e Estado aparecem imbricados e oferecem alguma margem para compreensões distintas. O poder político é definido como “poder organizado de uma classe para opressão de outra” e o Estado – em sentido comunista, pósrevolucionário – como “proletariado organizado como classe dominante”. A conquista do poder político poderia, assim, ser compreendida como conquista do Estado. E as próprias reivindicações da Liga dos Comunistas, em seus pontos 5, 6 e 7 – quando reivindica a “centralização do crédito nas mãos do Estado”, a “centralização nas mãos do Estado de todos os meios de transporte” e a “multiplicação das empresas fabris pertencentes ao Estado e dos instrumentos de produção” (Marx e Engels, 2010: 87-89) – parecem contribuir com a noção de que, de alguma maneira, o Estado deveria intermediar a realização plena da sociedade comunista. Ainda assim, historicamente houve duas compreensões distintas para essa noção de “conquista do poder político pelo proletariado”.

Por um lado, a interpretação do último Engels foi, certamente, a hegemônica entre os marxistas.

O proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 216 impor-se. (...) O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. (Engels, 2008: 126)  


O Estado é assim compreendido por uma chave instrumentalista, que o considera um instrumento manipulável; em termos teóricos e estratégicos, sustenta-se que o Estado seja conquistado pelos trabalhadores, por meio de revolução violenta e/ou eleições, e, como Estado socialista, utilizado como alavanca suprimir as relações de propriedade, o que implicaria, em algum tempo, o próprio desaparecimento do Estado. Em linhas gerais, esses elementos teóricos e estratégicos – estatistas, de acordo com a definição previamente esposada – subsidiaram a compreensão dos maiores nomes do marxismo clássico: K. Kautsky, V. Lênin, E. Bernstein, R. Luxemburgo, L. Trotsky, J. Stálin e Mao Tsé- Tung.

  K. Kautsky (2004) afirmou que o clímax do movimento do proletariado se dá “na grande batalha final pela conquista do poder político”; ou seja, na “utilização do poder do Estado para auxiliar na batalha contra o capital” e “transformar a propriedade capitalista dos meios de produção em propriedade social”. Para Lênin (2000), “quando o Estado for um Estado proletário, quando ele for um instrumento de violência exercido pelo proletariado contra a burguesia, devemos ser completamente e sem reservas favoráveis a um forte poder de Estado e ao centralismo.” Segundo Bernstein (1997: 94), “a prática marxista é predominantemente política, dirigida no sentido da conquista do poder político e seus atributos”. Rosa Luxemburgo (1999, p. 105) considera que a “aspiração do proletariado a apossar-se do Estado” é a finalidade socialista e que opor-se a ela é opor-se “ao próprio movimento socialista”. L. Trotsky (2007, p. 104) sustenta que “à classe revolucionária compete (...) a tarefa de conquistar o aparelho estatal”. Para J. Stálin (2006), “a última etapa da existência do Estado será o período da revolução socialista, em que o proletariado conquistará o poder do Estado e criará seu próprio governo (ditadura) para a destruição definitiva da burguesia”. Mao Tse-Tung (2004) sustentou a necessidade de um “poder político vermelho” para que se processe a revolução.

Houve, por outro lado, uma interpretação minoritária, heterodoxa, elaborada por marxistas como A. Pannekoek, K. Korsch e P. Mattick, que enfatizou a necessidade de organização de conselhos operários, os quais deveriam articular os trabalhadores fortalecendo a unidade de classe e permitindo não somente a supressão do capitalismo, mas também do Estado; a conquista do Estado não constituiria parte do programa socialista.

 Pannekoek (2008) enfatizou que com a “unidade de ação de massas, eles [os trabalhadores] começarão aumentar seu poder de classe contra o poder de Estado”. Para Korsch (2009), “o objetivo final propriamente dito da luta de classe proletária não é um estado de tipo ‘democrático’, de tipo ‘comuna’, dos ‘conselhos’ ou de qualquer outro tipo, mas a sociedade comunista sem classes Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 217 nem Estado, tendo por forma geral não já um poder político qualquer, mas apenas uma ‘associação onde o livre desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos’.” Mattick (1976) afirmou que a “primeira condição da produção e distribuição comunistas é que não exista nenhum aparato estatal ao lado ou acima dos conselhos e que a função ‘estatal’ (supressão das tendências contrarrevolucionárias) seja exercida pelos próprios operários, organizados em seus Conselhos”. Continua, dizendo que “qualquer partido que, enquanto uma fração dos trabalhadores, aspire ao poder estatal ou se coloque como um aparato estatal depois da tomada do poder, sem dúvidas tentará controlar a produção e distribuição, e reproduzir este controle para manter as posições obtidas.”

Para outros autores, essa posição antiestatista estaria presente na obra de Marx, em especial em A Guerra Civil na França – escrito em que analisa a Comuna de Paris, de 18711 – e poderia subsidiar a noção de que de Marx foi um antiestatista, ou seja, desenvolveu uma teoria da revolução e uma estratégia política que sustentaram não somente uma crítica radical e libertária aos aspectos dominadores do Estado, mas também uma proposta autogestionária de que ele fosse suprimido por meio de um processo revolucionário da classe trabalhadora. Nesse sentido, Alain Guillerm e Yvon Bourdet (1976: 66) afirmam que “Marx, após a Comuna, abandonou totalmente as opiniões estatistas que esposara eventualmente por via de uma perspectiva fundamental ‘autogestionária’”. A Guerra Civil na França constituiria, assim, um marco de passagem, conforme aponta Nildo Viana (2011: 66): “A análise de Marx sobre a Comuna serviu de ponto de partida para ele repensar o processo revolucionário e assumir uma posição definitivamente autogestionária”, ou seja, antiestatista e libertária. Para outros autores, esse texto de Marx enunciaria, mais propriamente, um projeto anarquista, como sustentam Maximilien Rubel e Louis Janover (2010: 57; 61): A Guerra Civil na França, para eles constitui um “verdadeiro manifesto anarquista”, que não sustenta “uma simples transferência de um instrumento de submissão de uma classe a outra”, mas “uma ação ‘contra o próprio Estado’”. Numa perspectiva não tão extremada, Daniel Guérin (1979: 63) afirma que “a comunicação de 1871” pode “ser considerada um ponto de partida” para uma tentativa de “síntese entre anarquismo e marxismo”, visto que “A Guerra Civil na França é marxista libertária”.

Marx antiestatista em A Guerra Civil na França?

 Para verificar se essas afirmações são procedentes, não há outro modo senão recorrer a A Guerra Civil na França, buscando responder duas outras questões: Essa obra possui elementos político-doutrinários capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política? Em caso positivo, possuiriam esses elementos uma base antiestatista?  

Parte-se da hipótese que Marx, depois da Comuna de Paris, modificou suas posições político-doutrinárias, a qual é sustentada não apenas pelos autores anteriormente citados, mas pelo próprio Marx e seu mais autorizado biógrafo. Marx, depois da Comuna de Paris, considerou ser necessário, inclusive, retificar o Manifesto Comunista: “A Comuna de Paris demonstrou, especialmente, que ‘não basta que a classe operária se apodere da máquina estatal para fazê-la servir a seus próprios fins’”. (Marx e Engels, 2007b, p. 72) Numa carta de 1871 a Kugelmann, Marx (1965, pp. 262-263) afirma ainda: “Se você ver o último capítulo do meu 18 Brumário, verá que eu declaro que o próximo esforço revolucionário na França não será mais, como antes, de transferir a máquina burocrático-militar de uma mão para outra, mas de destruí-la, e essa é a condição prévia de toda verdadeira revolução popular no continente”. Para Franz Mehring (1973: 465), A Guerra Civil na França constituiria um ponto de inflexão na obra marxiana; suas posições “apresentavam, contudo, uma certa contradição com as doutrinas que Marx e Engels vinham sustentando há um quarto de século e que proclamaram no Manifesto Comunista”.

 A análise em questão resume-se à terceira “Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores”, redigida após a Comuna. Como se sabe, o texto completo de A Guerra Civil na França compreende três mensagens do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. As duas primeiras, intituladas simplesmente “Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores”, analisam a Guerra FrancoPrussiana e foram escritas respectivamente entre 19 e 23 de julho de 1870 e 6 e 9 de setembro de 1870; são, portanto, anteriores à Comuna. A terceira, “A Guerra Civil na França”, que emprestou seu título ao conjunto dos textos, foi escrita entre abril e maio de 1871 e publicada em junho daquele mesmo ano em inglês.

Em acordo com escritos precedentes, Marx mantém em sua análise uma perspectiva crítica em relação ao Estado; enfatiza sua posição de favorecimento Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 219 ao capital, sua separação da sociedade civil, a burocracia e a corrupção inerentes à sua existência e seus aspectos coercitivos. A crítica de Marx (2008) ao Estado aparece em distintos momentos do texto. “O poder de Estado assumia cada vez mais o caráter do poder nacional do capital sobre o trabalho”. (p. 400) “O poder de Estado, aparentemente voando alto acima da sociedade”. (p. 401) “Uma vitória desta [Paris] sobre o agressor prussiano teria sido uma vitória do operário francês sobre o capitalista francês e os seus parasitas de Estado.” (pp. 375-376, grifos adicionados) “A Constituição Comunal teria restituído ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo Estado parasita. (p. 405, grifos adicionados) “O poder de Estado (...) era ela próprio, ao mesmo tempo, o maior escândalo dessa sociedade e o próprio viveiro de todas as suas corrupções. A sua própria podridão e a podridão da sociedade que ele havia salvo foram postas a nu pela baioneta da Prússia”. (p. 401) “O caráter puramente repressivo do poder de Estado abre caminho com um relevo cada vez mais acentuado”. (p. 400) “Os republicanos burgueses, que (...) tomaram o poder de Estado, serviram-se dele para os massacres de Junho”. (p. 400) A “velha organização municipal francesa de 1791 (...) rebaixa os governos das cidades a meras rodas secundárias na maquinaria policial do Estado prussiano”. (p. 406)

  Não se pode dizer, contudo, que essa perspectiva difira significativamente daquelas anteriormente mencionadas, que surgem ainda em suas produções de juventude e se conformam mais nitidamente de A Ideologia Alemã em diante.

Segundo Marx (2008: 403, 413, 408), a Comuna de Paris – contrapondo o Estado francês, no contexto da Guerra Franco Prussiana – constituiu uma forma de “autogoverno dos produtores”, uma “tendência de um governo do povo pelo povo”, que surgiu como resultado de um processo revolucionário protagonizado pela classe trabalhadora que, pela primeira vez, atuou em seu próprio favor e “tomou a direção da revolução nas suas próprias mãos”. Explicando a Comuna, Marx retoma o manifesto dos insurgentes de 18 de março de 1871, citando um trecho que afirma: “o proletariado (...) compreendeu que era seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar em mãos os seus destinos e assegurar-lhes o triunfo conquistando o poder”. Um dos traços mais marcantes do levante communard foi a busca dos trabalhadores parisienses tomarem seus destinos em suas próprias mãos, ou seja: a socialização generalizada do poder, inclusive do poder econômico. 

Sim, senhores, a Comuna tencionava abolir toda essa propriedade de classe que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela aspirava à expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual uma realidade transformando os meios de produção, terra e capital, agora principalmente meios de escravizar e explorar o trabalho, em meros instrumentos de trabalho livre e associado. – Mas isto é comunismo, comunismo “impossível”! (Marx, 2008: 407)

No campo político, as medidas implantadas pela Comuna de Paris, em seus breves 72 dois dias de existência, enunciam a radicalidade do projeto Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 220 communard. Conforme enunciadas por Marx, elas incluem: socialização do poder político; fim da burocracia; servidores públicos com salários equivalentes aos dos operários; conselheiros municipais eleitos diretamente pelo voto dos bairros; mandatos imperativos e revogabilidade das funções públicas; fim da divisão de poderes entre Executivo e Legislativo; eleição e revogabilidade de juízes e magistrados; fim do exército regular e sua substituição pelo povo em armas; polícia sem função política, revogável e servindo como instrumento da Comuna; socialização da educação, expropriação da Igreja e fim de sua interferência nos assuntos públicos e na educação

Essas medidas são esposadas por Marx (2008) na terceira parte do texto. “Não só a administração municipal, mas também toda a iniciativa até então exercida pelo Estado foram entregues nas mãos da Comuna.” (p. 403). “As funções públicas deixaram de ser a propriedade privada dos testas de ferro do governo central.” (pp. 402-403) “O serviço público tinha de ser feito em troca de salários de operários.” (p. 402) “A Comuna foi formada por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade.” (p. 402) “Sendo cada delegado revogável a qualquer momento e vinculado pelo mandat impératif” (p. 404) “A Comuna havia de ser não um corpo parlamentar, mas operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo.” (p. 402) “Magistrados e juízes haviam de ser eletivos, responsáveis e revogáveis.” (p. 403) “A supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado.” (p. 402) “A polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos e transformada no instrumento da Comuna, responsável e revogável em qualquer momento.” (p. 402) “Todas as instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente.” (p. 403) “Desmantelamento e expropriação de todas as igrejas enquanto corpos possuidores” e “instituições de educação (...) libertas de toda a interferência de igreja e Estado.” (p. 403)

  Essa socialização do poder em distintos níveis (econômico, político, cultural etc.) levada a cabo pela Comuna permite vinculá-la diretamente ao objetivo da Internacional, enunciado em suas “Provisional Rules” já em 1864, as quais foram redigidas pelo próprio Marx e preconizavam: “a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores”.

Não parece haver dúvidas que essa “forma política finalmente descoberta” (Marx, 2008: 406) na Comuna de Paris constitui um caso de abolição do Estado, como mecanismo de poder político separado da sociedade civil em que uma minoria governa a maioria visando à manutenção status-quo por meio de uma burocracia – que possui salários diferenciados, mandatos não revogáveis e nem imperativos – com e do monopólio da violência materializado num exército regular. Marx (2008: 405-406) notou que “essa Comuna nova (...) quebra o moderno poder de Estado” e demonstra um “antagonismo (...) contra o poder de Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 221 Estado”; com ela, o “poder de Estado” é “substituído”2 . Nesses termos, é difícil concordar com a interpretação que Lênin (2007: 67) dá à Comuna e ao texto de Marx, afirmando que “não se trata de aniquilar a burocracia de uma só vez, até o fim e por toda a parte. (...) Mas destruir sem demora a velha máquina administrativa para começar imediatamente a construir uma nova, que permita suprimir gradualmente a burocracia.” Não há evidências de que o projeto da Comuna de Paris tenha enunciado a substituição do Estado capitalista, burguês, por um novo tipo de burocracia, uma forma transitória ainda de bases estatistas, uma forma política que ainda pudesse ser chamada de Estado.

 Como apontou Marx (2008: 399), a Comuna demonstrou em sua práxis que “a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria do Estado já pronta e fazê-la funcionar para seus próprios fins”. 3 As medidas políticas implantadas pelos trabalhadores parisienses parecem não deixar dúvidas a respeito disso. Entretanto, esse trecho de Marx é recorrentemente citado para embasar a afirmação que ele teria modificado os fundamentos de sua compreensão do Estado e, respectivamente, de sua teoria da revolução e sua estratégia política. Deve-se apontar que esse trecho pode ser interpretado de duas maneiras diferentes: Marx refere-se à compreensão do Estado dos communards; Marx refere-se à sua própria compreensão do Estado.

Que os communards tenham compreendido dessa maneira o Estado parece evidente, não somente por sua própria afirmação, já citada, de que era seu dever “tomar em mãos os seus destinos e assegurar-lhes o triunfo conquistando o poder”, mas também pelas medidas colocadas em prática para a supressão do Estado. A segunda interpretação exige uma análise mais criteriosa. Compreender que nesse trecho Marx refere-se à sua própria compreensão do Estado implica assumir que houve uma mudança significativa em relação à sua maneira anterior de conceber o Estado. A tese instrumentalista de A Ideologia Alemã e do Manifesto Comunista, de que o Estado constituiria um instrumento manipulável, utilizado pela classe economicamente dominante para impor sua política à sociedade, seria assim diretamente colocada em xeque. Em A Ideologia Alemã, o Estado é conceituado como “forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns”. (Marx e Engels, 2007a: 76) No Manifesto Comunista, o Estado moderno é definido como “uma comissão que administra os negócios comuns do conjunto da classe burguesa”. (Marx e Engels, 2010: 59) A interpretação mais comum dessas posições, hegemônica no marxismo até os anos 1960, sustenta que o Estado moderno (capitalista)   administra os interesses da classe capitalista porque está sob o controle direto de seus membros e, portanto, enquanto está sob o seu controle.

A noção de “poder de Estado” como “máquina de despotismo de classe” (Marx, 2008: 400) ganharia, nessa nova concepção, o sentido de que o Estado constitui, sob qualquer uma de suas formas e independente daqueles que estejam em seu comando, um instrumento de dominação de classe e que, portanto, em um processo revolucionário, ele deveria ser imediatamente abolido, suprimido, sob pena de perpetuar a dominação de classe, ainda que com outra configuração. Ou seja, Marx teria, com essa posição, aderido a posições anarquistas fundamentais.

  Parece um exagero, entretanto, considerar que Marx, com base nesse trecho dúbio, tenha aderido às posições anarquistas ou mesmo realizado uma mudança radical em sua compreensão do Estado. Não se pode distinguir, com segurança, se nesse trecho Marx afirma a posição histórica dos communards ou a sua própria.

O mesmo problema aparece em outros trechos, que também permitem interpretações distintas. Quando Marx (2008: 403) afirma que “a Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França”, que o “velho governo centralizado teria de dar lugar (...) ao autogoverno dos produtores”, e que “estabeleceu-se claramente que a Comuna havia de ser a forma política”, ele parece, inclusive pelos termos originais em inglês, estar relatando a história da Comuna e a influência que ela tinha ou poderia ter entre outros trabalhadores4 . Também não parece evidente que Marx esteja aqui recomendando aos trabalhadores franceses e de outras localidades a estratégia de transformação revolucionária adotada pelos communards. Isso também parece estar evidente em dois outros trechos, em que Marx (2008: 406-407) enfatiza que a Comuna foi “essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a apropriadora, forma política finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação econômica do trabalho” e que ela “havia pois de servir como uma alavanca para extirpar os fundamentos econômicos sobre os quais assenta a  existência de classes e, por conseguinte, a dominação de classe”, especialmente se levados em conta os termos originais em inglês5 .

Tomando em conta que Marx conhecia perfeitamente o inglês e que preferiu, conscientemente, utilizar termos que não expressam claramente uma recomendação da estratégia communard aos trabalhadores franceses e de outras localidades, pode-se afirmar que, muito provavelmente, ele referiu-se, nesse texto, tão somente ao que foi o episódio histórico da Comuna6 .

  Compreende-se, pelos elementos analisados, não haver bases seguras para afirmar que A Guerra Civil na França possua elementos político-doutrinários capazes de subsidiar uma teoria da revolução e uma estratégia política. Sem dúvidas, esse texto possui como foco a análise conjuntural da França daquele momento e o relato histórico da experiência da Comuna de Paris. Também não há dúvidas que Marx o fez tomando partido claro de um dos lados nesse episódio da luta de classes: o dos trabalhadores parisienses insurretos. E não podia ser de outra forma, visto que as mensagens eram assinadas pelo Conselho Geral da Internacional. Ainda assim, não se considera ser possível transformar, automaticamente, a análise de Marx acerca daquilo que foi o fenômeno da Comuna de Paris, naquilo que deveria ser uma teoria da revolução ou uma estratégia política recomendada para o movimento internacional dos trabalhadores. Desde um ponto de vista lógico, incorrer nesse procedimento seria o mesmo que considerar fascista um historiador do fascismo; um equívoco metodológico no mínimo grosseiro.

Considera-se, por isso, que A Guerra Civil na França deve ser tomada como uma obra histórica de Marx, com poucos, se é que há alguns, elementos políticodoutrinários. Ela dedica-se a analisar um episódio histórico específico, a Comuna de Paris, a qual certamente possui traços antiestatistas, autogestionários, libertários.

A recente obra de Alexandre Samis, Negras Tormentas, apresenta argumentos bastante convincentes para entender o porquê desses traços. Samis (2011, 150, 340) atribui esses traços a um enraizamento na classe trabalhadora francesa das posições dos socialistas mutualistas e coletivistas: “tanto o mutualismo quanto o coletivismo constituíam-se em formas históricas específicas de uma mesma tradição antiautoritária e federalista presente no movimento operário francês”. A cultura política estabelecida entre esses trabalhadores permite compreender a determinação da posição dos internacionalistas no rumo dos acontecimentos: “a maioria [da Comuna de Paris] ‘não era propriamente socialista’”, mas “acabou por ser arrastada ‘pela força irresistível das coisas’”; “restou aos jacobinos e blanquistas (...) aceitar a radicalização do processo rumo ao socialismo”. É natural, portanto, que, esses traços se transpareçam nas análises do fenômeno, ainda mais quando abordado por autores simpáticos a ele, como foi o caso de Marx.

  Posições Ulteriores Finalmente, como outro elemento que contribui com o argumento sustentado, considera-se relevante apontar que as posições teórico-estratégicas de Marx nos anos posteriores à Comuna, em especial no que tange à sua intervenção na Associação Internacional dos Trabalhadores. Conforme enfatiza James Guillaume (1985), o conflito entre federalistas e centralistas, que pautou toda a existência da associação, em geral em detrimento dos segundos – primeiro em favor dos mutualistas e depois dos coletivistas, conforme demonstra Samis (2011) – acirrou-se depois da Comuna e a disputa sobre a necessidade de conquista do poder político, do Estado, pelo movimento internacional de trabalhadores, emergiu com força. A proposição sustentada por Marx na Conferência de Londres, em 1871, que está na base da cisão da Internacional em 1872, teve por motivo principal as diferentes concepções acerca do papel do Estado na revolução. Marx defendeu e fez aprovar, depois da exclusão dos anarquistas, o seguinte artigo:

Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo num partido político particular, o qual se confronta com todos os partidos anteriores formados pelas classes possuidoras. Essa unificação do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e seu fim último – a abolição das classes. A união das forças dos trabalhadores, que já é obtida mediante a luta econômica, tem de tornar-se, nas mãos dessa classe, uma alavanca em sua luta contra o poder político de seus exploradores. Como os senhores do solo e do capital se servem de seus privilégios políticos para proteger e perpetuar seus monopólios econômicos, Corrêa, F.. 3(2): 211-227, 2013 225 assim como para escravizar o trabalho, então a conquista do poder político torna-se uma grande obrigação do proletariado. (AIT, 2012, pp. 81-82) 


A defesa de Marx, um ano após a Comuna, da “unificação do proletariado em partido político” e da “conquista do poder político”, como uma “grande obrigação do proletariado”, parece assemelhar-se sobremaneira às posições com mais de 20 anos esposadas no Manifesto Comunista, assim como às interpretações do último Engels.

 Referências bibliográficas

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A revolucionária está de volta. Anna Campbell a revolucionária do anarquismo curdo.

  Campbell nasceu em Lewes,  East Sussex ,  Inglaterra , filha do músico de rock progressivo Dirk Campbell. Ela foi educada na escola secund...